A reconstrução do Brasil depende de comunicações e Internet democráticas, justas e garantidoras de direitos
Carta de lançamento do DiraCom - Direito à comunicação e democracia
Os últimos anos foram marcados por retrocessos no campo dos direitos sociais e fundamentais e por ataques às instituições democráticas no Brasil. Forças de direita e extrema-direita implementaram uma agenda ultraliberal, ampliaram as desigualdades, destruíram o meio ambiente, aprofundaram a opressão contra segmentos minorizados. Entre os seus muitos alvos, foi atacado o direito à comunicação em suas várias dimensões, como a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, o direito à informação, o exercício profissional de jornalistas e comunicadores/as, o acesso ao uso pleno de meios para informar e ser informado, em especial as tecnologias digitais.
As políticas dos governos Temer e, especialmente, Bolsonaro, aprofundaram o já vertical, concentrado e excludente modelo das comunicações brasileiras, desregulamentando o pouco que existia de políticas públicas, sempre em prol dos interesses privados do empresariado do setor e de grandes grupos econômicos transnacionais.
A radiodifusão, que nunca representou a diversidade brasileira nem abordou de fato os problemas da maioria da população, pois sempre foi controlada pelos interesses das classes dominantes, adquire cada vez mais um viés ultraliberal e é ocupada por um número crescente de igrejas. Na tela da TV aberta, multiplicam-se programas violadores de direitos e assentados no proselitismo religioso. O histórico controle de emissoras por políticos segue forte, afetando o debate sobre visões de mundo e sufocando vozes dissonantes.
Experiências democráticas, como a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), foram duramente aparelhadas e desmontadas. O jornalismo profissional tem sido reiteradamente atacado pela gestão Bolsonaro, com perseguições, assédios e os mais variados métodos de intimidação, especialmente das mulheres jornalistas. A violência política virou prática corrente contra trabalhadores/as e comunicadores/as.
Tais agressões contra jornalistas e ataques aos meios de comunicação foram somados à desinformação e ao discurso de ódio, elevados à condição de estratégia oficial de comunicação e sustentação do governo. Veículos aliados de Jair Bolsonaro passaram a propagar mentiras e peças de propaganda do governo travestidas de reportagens, mesmo nos momentos mais dramáticos da crise social e política atual e durante a pandemia, quando o Executivo se omitiu diante das milhares de mortes e fez campanha contra medidas recomendadas por autoridades de saúde.
A Internet foi palco privilegiado dessas estratégias. Explorando como poucos o modelo de negócios e a arquitetura das plataformas de redes sociais e aplicativos de mensagem, mecanismos de busca e plataformas de vídeo, a extrema-direita construiu no ambiente digital um universo paralelo onde questionaram fatos reais, a ciência e a natureza internacional dos direitos humanos. É fato que a Internet é também espaço público de expressão de resistências, mas tal ambiente tem sido tomado pelo poder econômico das oligarquias estadunidenses e utilizado para controle e dominação social. Uma trajetória que repete a de outros meios de comunicação e que, tendo em vista a penetração da rede e seu impacto nas diversas esferas da vida, bem como o poder transnacional que elas consolidam, demanda medidas urgentes.
Estamos ainda longe de enfrentarmos esse desafio com a centralidade que ele merece. Indo contra diversos setores da sociedade, entre os quais movimentos e organizações sociais e pesquisadores e pesquisadoras, o governo Bolsonaro, por exemplo, bloqueou até o momento no Congresso Nacional a aprovação de uma necessária regulação das redes sociais proposta no Projeto de Lei 2.630 (a despeito de problemas pontuais que merecem ser corrigidos). Tentou ainda implementar, via medida provisória, uma legislação que limitava o poder dessas empresas de combater a desinformação, e instituía no governo um “Ministério da Verdade”. A forte pressão social em 2021 barrou a tramitação da MP.
Outra marca do último período foi a adoção de medidas de vigilância no âmbito federal e estadual, acompanhadas da ausência de efetividade na implementação do arcabouço de proteção de dados estabelecido na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, aprovada em 2018. Aliado a setores empresariais, o governo impôs também no setor ataques às instituições. Exemplo disso, impediu a necessária autonomia e independência da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que somente poderá ser estabelecida com a mudança na estrutura jurídica do órgão. A fragilidade da ANPD deixou o caminho aberto para a vigilância, com a ampliação da coleta de dados de cidadãos por serviços públicos para, depois, entregá-los/vendê-los a empresas privadas.
Nem mesmo o direito essencial relacionado à Internet, o acesso à rede mundial de computadores, foi garantido de modo universal, como estabelecido no Marco Civil da Internet.. Num processo impulsionado pelo governo, em 2019, a Lei Geral de Telecomunicações foi alterada, resultando na entrega ao setor privado de cerca de R$ 100 bilhões em patrimônio público, especialmente redes de transporte e acesso construídas durante anos, comprometendo o caráter público dessas infraestruturas relevantes para o exercício da soberania no campo das comunicações. Desmontaram ainda os instrumentos do Estado para políticas de acesso e implementaram iniciativas tímidas de inclusão, voltadas, em muitos casos, ao atendimento de sua base eleitoral. Assim, o tratamento da comunicação como mercadoria mais uma vez promove exclusões profundas, sobretudo da população de baixa renda, negra, periférica, dos povos e comunidades tradicionais.
O leilão do 5G, alardeado como grande feito, foi marcado por questionamentos pela área técnica da corte de contas brasileira, em diversos aspectos: do valor da transação às totalmente insuficientes obrigações definidas como contrapartidas às empresas, que agora estão autorizadas a explorar quase que todo o espectro brasileiro por prazos de até vinte anos. O que poderia servir à população para reduzir o fosso digital cruel acabará, assim, sendo apropriado pelo interesse privado.
O não tratamento da comunicação como um direito mostrou sua face mais perversa durante a pandemia, quando o acesso a políticas públicas diversas, inclusive à vacinação, dependeu do acesso à Internet, sem que tenham sido desenvolvidas políticas para isso. Não ter comunicação ou ser bombardeado por desinformação significou, para muitos brasileiros e brasileiras, perder a vida. Em meio a uma pandemia que impôs aulas remotas, o governo federal abortou o esforço da sociedade e do Congresso de destinar recursos à conectividade de escolas e alunos da rede pública de ensino. Nesse mesmo contexto, grandes conglomerados internacionais penetraram nas instituições de ensino público se estabelecendo como as plataformas digitais que intermediam e monopolizam a relação entre alunos e professores à distância.
Esse cenário extremamente desafiador em todos os campos e também nas comunicações vem exigindo uma atuação vigilante e intensa da sociedade civil e dos setores comprometidos com uma mídia e Internet democráticas, justas, sem opressões e alinhadas com a liberdade de expressão e a garantia dos direitos humanos. A resistência a tantos ataques e retrocessos e a iniciativas de redução de espaços de participação popular para a construção de políticas públicas é feita por diversas redes e movimentos, como o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e a Coalizão Direitos na Rede. Mais corpos e corações, entretanto, são sempre bem-vindas/os e necessárias/os para fortalecer as lutas pela efetiva garantia do direito à comunicação e à participação democrática no país, conquistados há 34 anos.
É para isso que nós nos colocamos. Hoje, data em que celebramos o aniversário da Constituição Federal, lançamos o DiraCom - Direito à Comunicação e Democracia, uma organização que reúne ativistas, militantes, pesquisadores e profissionais de diversos locais e experiências para atuar, a partir da defesa e promoção de direitos, contra as desigualdades, injustiças e opressões históricas que marcam nossa sociedade, os meios de comunicação e serviços baseados em tecnologias digitais.
Sabemos que o Brasil nunca completou a básica agenda democrática para as comunicações e estamos cientes que a tarefa não é simples. Diferente de vizinhos latino-americanos, apesar das lutas e práticas de comunicação contra-hegemônicas aqui sempre presentes, a desigualdade é marcante no setor. As classes dominantes brasileiras sempre sabotaram o esforço pela aprovação de leis e normas democráticas para estabelecer limites à concentração de propriedade dos meios e para promover a pluralidade e diversidade, valorizando os diversos segmentos da sociedade, especialmente os historicamente oprimidos. Não há como reconstruir o Brasil, sua democracia e suas políticas sociais sem encarar esse desafio. Ele é estratégico e urgente.
Se o Brasil já foi referência com a aprovação do Marco Civil da Internet em 2014 e da LGPD em 2018 (das quais participamos ativamente), precisa agora dar conta do desafio regulatório nas comunicações e também seguir o movimento mundial por uma regulação democrática das comunicações em geral, em especial das plataformas digitais, com políticas robustas de universalização da conectividade e manutenção da neutralidade de rede, além de medidas de combate à concentração.
Pretendemos ser um foco ativo de avaliação desses problemas, sobretudo em um cenário de rápidas transformações, causadas pela crescente digitalização e pela emergência de um paradigma calcado na coleta massiva de dados, no processamento por sistemas automatizados (como algoritmos e sistemas de inteligência artificial) e aplicações voltadas a comercializar todo tipo de experiência online e a modular comportamentos para fins econômicos e políticos.
Queremos contribuir com o enfrentamento à mercantilização da vida, que tem nos processos associados às comunicações digitais um novo e profundo dinamizador, além de promotor de profundos impactos ambientais.
Queremos atuar para sensibilizar a sociedade e seus diversos segmentos para esses problemas. Queremos ser um espaço de discussão, troca e formulação sobre respostas possíveis a tais desafios. Promoveremos reflexões coletivas sobre como entendê-los e como enfrentá-los. Contribuiremos com o debate público com formulações sobre possíveis caminhos e saídas. Reforçaremos as articulações já existentes e a atuação em rede por essas causas.
Almejamos combinar a atenção aos problemas de curto, médio e longo prazos. O esforço de reconstrução do Brasil exige soluções para o agora, mas que não podem estar desconectadas de um projeto de longo prazo que re-imagine a comunicação em uma perspectiva voltada à construção de uma nova sociedade radicalmente justa.
Nossa referência para analisar e agir sobre esse cenário é o reconhecimento da comunicação como um direito pelo qual é necessário lutar. Um direito que deve ser garantido em suas várias dimensões e cuja centralidade e urgência precisam ser reconhecidas, já que ele também é essencial para a garantia de outros fundamentais e para a construção de uma nova sociedade.
Nossos fundamentos são a democracia, a justiça social e ambiental, a soberania popular, os direitos humanos e o combate às desigualdades e opressões. Convidamos desde já o país a discutir um programa para as comunicações e a Internet, que passe por regulações e políticas públicas de modo a concretizar esses objetivos no sistema de mídia brasileiro e no meio digital.
Iniciamos hoje esta construção coletiva, aberta às vozes, lutas e desafios de agora e dos dias que virão! Vamos juntes construir essa caminhada!
Brasil, 5 de outubro de 2022.
Bia Barbosa, Bruno Marinoni, Daniel Macedo, Flávia Lefèvre Guimarães, Jonas Valente, Helena Martins, Marcos Urupá e Renata Maffezoli