O desafio da independência frente às plataformas digitais
Publicado: 07/09/2023
Por Helena Martins e Bruno Marioni
Neste feriado, no qual se relembra a independência do Brasil em 1822, até então submetido ao sistema colonial capitalista, vale questionar o quanto nos encontramos enredados em novas dinâmicas de subordinação duzentos e um anos depois. Nesse sentido, fizemos o exercício de olhar para a internet que temos hoje e nos perguntamos sobre caminhos para afirmar a soberania nacional diante do poder econômico, cultural e político que domina o setor.
No mês de julho deste ano, o ministro Benedito Gonçalves, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), multou o Google em R$ 60 mil por descumprimento parcial de uma decisão anterior, cuja determinação obrigava a empresa a fornecer informações sobre links patrocinados pelas campanhas eleitorais presidenciais em 2022. O valor é irrisório para uma gigante do porte da Alphabet (holding que tem como principal subsidiária a empresa Google), mas o problema é da maior relevância: as plataformas digitais detêm poder suficiente para ignorar a soberania dos poderes nacionais, interferindo inclusive na escolha dos dirigentes de um país?
Para além de insubordinações frente às decisões dos poderes constituídos, as corporações do setor confrontam a soberania nacional também atuando de maneira ativa para moldar a sociedade brasileira de acordo com os seus interesses. O exemplo mais significativo deste fato aconteceu neste ano, no final de abril e começo de maio, quando as plataformas digitais orquestraram um ataque contra o Projeto de Lei 2630 (conhecido como "PL das Fake News") que entrava em regime de urgência para ser votado no Congresso Nacional. Empresas como Google e Meta se valeram do seu poder econômico e de sua posição privilegiada na circulação de informação para fazer prevalecer uma versão distorcida do debate em torno da regulação e de caminhos para se enfrentar a desinformação. Segundo a Agência Pública apurou, o Google gastou mais de R$ 470 mil em anúncios contra o PL 2630 no Facebook e Instagram entre 30 de abril e 6 de maio.*
O impulso de mundialização do capital das últimas décadas, em sua relação com o desenvolvimento da arquitetura da rede mundial de computadores, significou, no setor de tecnologia, a hegemonia das plataformas comerciais estadunidenses, que conquistaram alcance global e monopolizaram a mediação entre os atores das redes (ainda que países como a China desafiem hoje de forma considerável esse poder). Foi imposto, assim, um modelo de tecnologia, no qual prevalecem os interesses capitalistas estrangeiros em detrimento das escolhas e necessidades locais, ainda que nesse processo seja possível identificar algum estreito espaço de negociação e resistência. Essa dinâmica tem moldado tanto os conteúdos culturais e informativos que circulam quanto as características tecnológicas, regulatórias e estritamente econômicas do setor.
Nessa dinâmica desigual entre os países, o Brasil segue sendo consumidor e não produtor de tecnologia, o que tende a reforçar a desigualdade em relação aos países que ocupam a posição de desenvolvedores. Tem restado a nós participar dessa economia digital plataformizada como produtores de matérias-primas e como mão de obra barata, situação bastante evidente em outros países que não estão no centro do capitalismo. Na Argentina, no Chile e na Bolívia, para citarmos o exemplo de vizinhos latino-americanos, a exploração de lítio tem sido apontada como forma de inserção e de ganhos, o que promove o modelo extrativista gerador de vários problemas sociais e ambientais. O impacto de toda essa dinâmica já se revela como um desafio neste momento em que a crise ambiental ameaça a existência da vida no planeta. Dos países pobres tem sido também explorados trabalhadores e trabalhadoras que participam das cadeias de produção de tecnologia nas posições mais precárias, como treinando mecanismos da chamada inteligência artificial.
A desigualdade entre os países não deve ser entendida como natural, mas resultado de políticas que transferiram a exploração de setores como as telecomunicações à iniciativa privada e desestruturaram a produção científica e tecnológica, a exemplo do que ocorreu no Brasil. Aqui assistimos, a partir da década de 1980, a desestruturação de espaços como o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPQD). Essa dinâmica foi intensificada pelo neoliberalismo e, recentemente, com Jair Bolsonaro, atingiu seu ápice com o ataque às políticas de educação e de ciência e tecnologia. Sem recursos públicos, o que vemos é cada vez mais as corporações de tecnologia, como Google e Facebook, financiarem pesquisas, definindo agendas e abordagens.
Temos perdido, assim, capacidade de identificar nossos desafios e definir nossos próprios caminhos. Acordos firmados pelo governo Bolsonaro entre a Amazon e o Ministério da Saúde para armazenamento de dados, a entrega de dados de servidores para a IBM por meio do Sou.gov e o estímulo à utilização do Google nas escolas durante a pandemia de covid-19 são exemplos do tamanho da captura dos nossos recursos estratégicos pelo capital estrangeiro do setor.
Agora, resta saber se o governo Lula optará por modificar essa direção nas escolhas feitas no setor de tecnologias de comunicação e internet. Infelizmente, a entrega do Ministério das Comunicações para o União Brasil é, para nós, um forte indício da incompreensão que prevalece sobre o papel estratégico das comunicações e das tecnologias, ainda tratadas como uma "mera questão" de infraestruturas. Por outro lado, em vários ministérios surgem pastas voltadas às questões da internet, expressando que as mudanças na dinâmica social, embora não enfrentadas globalmente, se impõem. Cabe a nós cobrar que essa leitura fragmentária seja superada e que um projeto seja discutido com a sociedade.
A garantia da soberania nacional diante das plataformas é um grande desafio coletivo. É preciso conter o poder desses gigantes da tecnologia, daí a importância de regular o setor e ir além. É necessário desenvolver infraestrutura e garantir a conexão da população, ainda hoje submetida a uma enorme desigualdade no acesso. Essa inserção deve ser acompanhada pela produção e promoção de aplicações próprias, com outras lógicas e objetivos. Dinamizar a produção científica e tecnológica (submetida não aos interesses das empresas, mas da sociedade), gerar empregos e estimular a qualificação do trabalho, fomentar, enfim, o setor de forma que não se aprofunde a dependência e a mercantilização, mas aponte para o tratamento da internet como um bem comum.
*Ver https://apublica.org/2023/05/google-pagou-mais-de-meio-milhao-de-reais-em-anuncios-no-facebook-contra-pl-das-fake-news/